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Desigrejado: um peixe fora d’água

Um peixe fora d’água que pode morrer a qualquer momento. Assim se percebe o movimento das pessoas que não querem ser membros das igrejas evangélicas. Antigamente se ouvia falar sobre os católicos romanos que eram praticantes e não praticantes. Mas os evangélicos eram praticantes. Não existia notícia de um evangélico que não fosse membro de uma igreja. Era comum a emissão de carteira de identificação para os membros. Mas a igreja evangélica mudou.

Hoje existe o evangélico que não quer mais frequentar uma igreja institucional. Eles ficaram conhecidos popularmente como desigrejados que são cristãos evangélicos que se desvincularam das igrejas. Não aceitam mais fazer parte da membresia, criticam a institucionalização da . Os sem igreja são uma tribo informal com pessoas que desistiram da igreja.

O movimento também recebe diversos nomes alternativos. Teólogos e cientistas da religião, que publicaram obras sobre o assunto, descrevem a pessoa que quer distância de igreja como descrente, antidenominacionalista, fé autônoma, sem igreja, tribo, ilhado, separatista. O termo desigrejado é criticado pelas pessoas que não querem ser membros das igrejas que entendem que é pejorativo.

Nas redes sociais circula uma frase que ilustra a realidade atual. A frase diz que chegou o tempo que os evangélicos precisam evangelizar os próprios evangélicos. O cenário religioso brasileiro se alterou. Os evangélicos que não querem saber de igreja tornaram-se autônomos na fé.

Os números

A partir da divulgação da Pesquisa do Orçamento Familiar (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), esse assunto ficou em evidência e os estudiosos da religião voltaram a atenção para pesquisar sobre o tema.

O IBGE pesquisou o assunto em 2003 e em 2009. Mas divulgou os números no censo de 2010.

De acordo com a pesquisa, 14% entre os declarados evangélicos não têm vínculo institucional. Esse número representa quatro milhões de brasileiros. Números mais atuais não foram pesquisados uma vez que o censo do IBGE é realizado de 10 em 10 anos.

Nova pesquisa deveria ter sido feita este ano, mas foi adiada por causa da Covid-19.

A diferença entre desigrejado e desviado

É necessário fazer separação entre desigrejados e desviados. O primeiro é formado por cristãos que deixaram as igrejas, mas não abandonaram a fé.

Os desigrejados até podem deixar a fé futuramente ou não. Os desigrejados podem esfriar a fé e se desviar, mas não são desviados necessariamente.

Tipos de desigrejados

Não existe um único tipo de público. Existem pessoas com os mais variados discursos justificando a saída da igreja. Os teólogos que estudam esse tema descrevem subgrupos dentro do grande quadro de desigrejados. Eu entendo que é melhor simplificar e ver esse movimento em três grandes partes.

Existe o primeiro grupo de pessoas que abandonaram a igreja e a fé. Esse grupo primeiro abandona as reuniões da igreja, torna-se desigrejado e depois desviado.

No segundo grupo, existem aqueles que abandonaram a igreja, mas mantém a fé. São os cristãos sem igreja. Os decepcionados por terem vivido algum problema na comunidade. Tentam continuar a ser cristãos sem pertencer ou frequentar um templo. Nesse segundo grupo há pessoas que amam a Cristo, mas preferem viver longe dos pastores e dos irmãos. Esses não se consideram fora do corpo de Cristo. Querem servir a Jesus. Só não aceitam a tutela institucional. Algumas das pessoas desse grupo são levadas a sério. Outras são criticadas, rotuladas ironicamente e discriminadas.

Têm ainda os mais radicais. O terceiro grupo é formado pelos que não frequentam culto e pregam o fracasso da igreja organizada. Defendem o cristianismo sem igreja. Afirmam que as pessoas devem sair da igreja para encontrar Deus. Querem que as igrejas acabem em todo o mundo. Que fechem suas portas. Pregam o fim da instituição.

Qual a diferença entre os decepcionados e os radicais? Apesar de ter pessoas que abandonaram a igreja em todos os grupos, a diferença principal entre eles é que o segundo grupo não faz militância pelo fim da organização, para que todos os templos fechem as portas.

Os decepcionados estão ainda com as feridas abertas, mas não usam de ideias e palavras tão radicais como o terceiro grupo. Geralmente as pessoas decepcionadas acabam migrando para projetos como reuniões nos lares ou células, por exemplo. Têm pessoas que não querem pertencer à membresia e que são usuários temporários dos serviços e eventos oferecidos pela igreja como os congressos e seminários. Existem os que usam a igreja como vida social.

O que importa não é ajudar a igreja a crescer, mas usá-la para passar o tempo, fazer amigos, servir-se dela como se fosse uma instituição secular apenas. Tudo sem o devido envolvimento de pertencimento. E também há os cristãos sem igreja que são adeptos das ministrações pela televisão e pela internet. Fazem da rede o seu templo. São observadores, sem comunhão e sem compromisso.

O alimento espiritual pela internet

A pós-modernidade trouxe mudanças para a igreja. Os meios de comunicação de massa da atualidade conectam o mundo. A prática da fé passou por transformação ao embarcar no uso da comunicação.

Muitos cristãos se alimentam espiritualmente de conteúdo divulgado pela internet (blogs, portais e redes sociais), rádio, TV, aplicativos (como o WhatsApp). Os desigrejados também entraram nesse contexto de ter alimento espiritual on-line.

Multiplicam-se páginas nas redes sociais debatendo sobre ser desigrejado. Há muitos vídeos postados no YouTube também. A liberdade de postar o próprio conteúdo ajuda na divulgação da ideia de ser avesso à igreja institucional.

A internet criou uma rede de relacionamento das pessoas. Conexão total. A religião não ficou de fora desse universo on-line. A fé saiu dos templos e entrou para a rede. A igreja evangélica brasileira se comunica via internet. E quem também não é mais igreja institucional, como os desigrejados, estão ligados nos grupos on-line.

São muitas as páginas de comunidades dos desigrejados nas redes sociais, pois essa ferramenta possibilita facilmente o compartilhar de informações. São fartamente usados o Facebook, Twitter, Linkedln, os aplicativos Instagram e Snapchat.

Por que as pessoas se afastam da igreja?

São muitas as razões para a desilusão com o corpo de Cristo. Vamos listar algumas:

As pessoas podem se afastar da comunhão dentro do templo alegando que a igreja institucionalizada não cresce e perdeu de vista a sua missão.

Outros, principalmente os jovens, entendem que a igreja está repleta de pessoas de mente fechada, ultraconservadores hipócritas, misóginos, homofóbicos e julgadores.

Muitos frequentadores da igreja sentem-se feridos e decepcionados.

Existem aqueles que afirmam razões históricas para abandonar a comunidade. Dizem que ideias gregas suplantaram o pensamento hebraico na igreja. O paganismo invadiu os templos acabando com a “igreja pura”. A igreja está corrompida. Boa parte do culpado por isso acontecer foi o Império Romano.

De acordo com alguns cristãos insatisfeitos, a igreja é um acidente histórico não bíblico, uma versão do paganismo. Esse grupo condena até o formato atual de culto alegando que é um modelo pagão. Não aceita o modelo de culto com sermão, não aceita a igreja ter prédios, rejeitam os líderes pastores. Não concordam com a liturgia, criticam dar oferta, não aceitam os corais nas reuniões.

Dizem que o modelo atual de culto foi influenciado negativamente pelo Império Romano e que a igreja do século XXI perdeu a pureza que tinha a igreja do século I.

Esse grupo que rejeita o modelo de culto e da organização administrativa da igreja são os mais radicais. Muitos defendem até o fechamento das portas da igreja. Falam também que não é bíblico a visão de igreja organizacional, institucional, hierárquica, programática e com cultos semanais. Defendem que Jesus não veio para criar uma religião.

A ideia dos desigrejados é que devemos ficar distantes das doutrinas humanas e dos rituais existentes hoje. Só assim a igreja estaria mais perto de Deus.

Quais as consequências do movimento?

O pensamento de afastar-se da igreja está gerando pessoas que não participam ativamente. São críticos. Pulam de igreja em igreja. Optam pela distância e não ajudam na edificação. Não contribuem com os cultos das igrejas que visitam.

Esquecem que cada um prestará contas acerca da esperança da fé, de incentivar o amor e as boas obras. Esquecem da responsabilidade de ter o cuidado pelos irmãos. Esquecem de cumprir o “Ide” de Jesus, pois pouco fazem por missões.

Os desigrejados mais radicais defendem o fim das igrejas institucionalizadas. Para substituir a igreja que dizem estar corrompida, criam um modelo alternativo de reunião. Sustentam que esse novo modelo criado é o verdadeiro e baseado na igreja primitiva.

Vivendo os modelos alternativos

Por causa da saída de muitos evangélicos das igrejas tradicionais, uma nova onda de igreja alternativa está ganhando força no Brasil. São as reuniões domésticas. Diante das novas ideias para a administração eclesiástica e doutrinas diferentes, as pessoas apontam novos caminhos de ser igreja.

Surge a pergunta: são desigrejadas as pessoas que frequenta as reuniões cristãs nos lares? A resposta é não. O ministério em célula (reunião doméstica ou igreja em casa) é uma alternativa para onde migram as pessoas que não desejam mais pertencer a uma igreja tradicional. Pode ser um caminho viável para os desigrejados não se tornarem desviados e não se desvencilharem de vez da comunhão com outras pessoas da mesma fé.

Mas que fique bem claro: o modelo de igreja em casa não é desigrejada, não prega o fim da igreja tradicional e não quer se afastar da fé. Muito pelo contrário.

Os cristãos que optam por esse modelo são fiéis, praticam as ordenanças da ceia e do batismo. Querem participar do corpo de Cristo. Só entendem que podem desenvolver a comunhão em ambiente diferente ao do templo. E veem no modelo bíblico uma alternativa. É a busca por ser parecidos com a prática de fé dos primeiros cristãos, em Jerusalém, que também se reuniam em casas.

Não existe uma estatística no Brasil sobre o número de residências nas quais acontecem cultos. Informalmente, sabe-se que é uma realidade esse tipo de reunião cristã. Nas conversas com os amigos é comum ouvir as pessoas dizendo que deixaram os templos e decidiram servir a Deus e à comunidade por meio das igrejas em casa. Muitos decepcionados com a igreja institucional buscam o caminho da comunidade da fé por meio da participação em pequenos grupos e células. Fazer parte desses grupos significa estar inserido no corpo de Cristo, mas de maneira informal.

O lar é um espaço propício para o ajuntamento em comunhão. Esse tipo de reunião pode muito bem servir de caminho para os desigrejados voltarem ao ajuntamento de fé. Inclusive existe base bíblica e teológica para esse modelo. As casas foram os locais de encontro dos primeiros cristãos no século I. O livro bíblico de Atos dá vários exemplos de Koinonia, ou seja, de comunidade, participação. Lucas, o autor do livro, mostra que a igreja compartilhada nos lares tinha características ímpares como hospitalidade, ajuda mútua entre as pessoas, divisão dos bens e da alimentação. Foi das casas de Jerusalém que os cristãos expandiram o ministério indo para as cidades de Filipos, Cesareia, Damasco, Éfeso entre outros locais. Cidades diferentes, mas ação padronizada. Todos se reuniam em casas.

Mesmo sendo uma opção para os desigrejados que não querem ser membros de uma igreja formal, o modelo de igreja doméstica não é livre de problemas. Há dificuldades em se viver valores éticos e relacionais. E há ainda uma crítica, pois parece que são defensores do niilismo. Mas não são. Os adeptos da igreja em casa não pregam essa doutrina filosófica. Não defendem uma visão cética radical em relação à igreja tradicional, não buscam aniquilar as convicções tradicionais. A visão de igreja em casa só quer ser uma opção a mais. Uma possibilidade de ser igreja fora do tradicional, na tentativa de voltar ao modelo primitivo.

Realmente não se pode generalizar afirmando que as pessoas que buscam uma comunhão alternativa nas residências são todas niilistas. Mas também não se pode negar que, dentro do movimento dos desigrejados, existe, sim, a filosofia niilista. O que é niilismo? O termo que vem do latim nihil e significa nada. O conceito de niilismo é, dentro de uma visão nietzschiana, “a descoberta da perda da verdade, da morte de Deus, ou melhor, o estado, a condição de um mundo sem mais verdade.” Há ainda outros autores que definem niilismo como “o processo pelo qual os valores fundamentais da metafísica se revelam infundados e como tais se aniquilam em sua total inconsistência filosófica.”

Niilista é o contestador dos valores e da ordem social vigente. É o homem que nada crê nada ou reconhece. Aquele que tudo examina do ponto de vista crítico. É o homem que não se curva perante nenhuma autoridade e que não admite como artigo de fé nenhum princípio, por maior respeito que mereça. O niilista vive um choque de gerações. Ele expõe a rachadura que existe entre pessoas com visão tradicional e outras com abertura de pensamento. Existem alguns que apelam para crença em antigos princípios, principalmente de fé. E existem outros que não são mais capazes de cultivar uma crença. Realidade que ilustra bem o mundo atual onde cresce o número de ateus e desigrejados.

O niilismo é uma corrente filosófica, um estilo de vida crítico que jogou por terra fundamentos antes sólidos como a religião. Nele se fala sobre o fim da verdade, do critério absoluto e universal. É o ser humano convocando seus semelhantes à sua própria liberdade e responsabilidade, agora não mais garantida, nem controlada por nada, muito menos pela religião.

Entendo a prática da espiritualidade

Além das ideias niilistas, é preciso entender como é a espiritualidade no mundo de hoje. A pós-modernidade desenhou um universo religioso próprio que pode ser percebido muito claramente no Brasil. A visão pós-moderna do universo religioso brasileiro é múltipla. Entenda por pós-modernidade uma época de mudança de hábitos, valores, concepções e práticas que marcaram o mundo e o diferencia dos períodos históricos passados. É um conjunto de novos valores na música, na literatura, na arte, nos filmes, nas novelas, no modo de vestir e no trato com as pessoas. É um tempo no qual valores educacionais, sociais, políticos, morais e religiosos estão sendo contestados e outros são propostos para o lugar.

O mundo pós-moderno engloba todas as crenças, nas suas mais variadas linhas de credo. A sociedade caminhou para exercer uma espiritualidade autônoma, longe da tutela das instituições religiosas, longe do domínio religioso. É preciso entender que a prática da espiritualidade na era pós-moderna tem características diversas como as pessoas avessas à tutela institucional. Religião não é institucional, as pessoas são religiosas sozinhas. São autônomas no exercício de suas crenças. Estão com Deus, mas querem ficar longe da instituição igreja. O grande exemplo são os desigrejados.

Hoje mudou também a ideia do que é verdadeiro e falso. A sociedade procura o que funciona sem querer saber se é certo ou errado. A religiosidade tornou-se subjetiva, mudando a ideia do que é verdadeiro e falso uma vez que agora não se está preocupado com a verdade absoluta. Aliás, na visão de muitas pessoas, não existe mais espaço para a verdade inquestionável. Já era o absolutismo.

O niilismo trouxe essa quebra de paradigma e colocou um fim na verdade absoluta. Tudo é questionado e criticado. Hoje as pessoas querem saber o que lhes é agradável, o que pode saciar a ideia do que quer agora, imediatamente. É a ideia do eu, do meu e do agora. A pessoa diz o que quer, do jeito que quer viver e crer e deseja resultados de sua fé imediatamente.

Estamos na era do egoísmo e do individualismo extremo. Abaixo a coletividade, pois o importante é sobressair a vontade própria. Parece contraditório, mas – mesmo existindo as comunidades em rede, aumenta o individualismo. Em outras palavras, a pessoa está cada vez mais sozinha mesmo conectada.

 

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